Matéria publicada em 2003 e revisada em 24.01.2019.
O candomblé NÃO existiu originariamente nas Minas Gerais, onde teria aparecido somente ao início do Século XX. As notícias de todos os terreiros atuais que pude achar na Internet (ano de 2003), são indicativas de suas influências diretas ou indiretas de Salvador-BA. Os centros de umbanda, quimbanda e macumba parecem ser filiados a influências do Rio de Janeiro, porém, mostram muitas influências banto, tendo, pois, mais ligações com os negros bantos das Minas Gerais.
Os negros mineiros, por serem em maior parte dos grupos bantos, assimilaram mesmo – sem absolutamente se utilizar do chamado “sincretismo religioso” – o cristianismo do século XVIII. Até hoje verifica-se, na África, que o maometanismo predomina muito mais nos países de povos sudaneses e de outras nações no norte e noroeste da África. Em Angola e Moçambique, por exemplo, predomina o cristianismo relativamente à religião do Islã. Por esta razão, concordamos, neste ponto, com o Prof. Waldemar de Almeida Barbosa:
“Essa predominância de bantos, em Minas Gerais, explica muita diferença de mentalidade entre os escravos de Minas Gerais e os da Bahia. Por isso mesmo, a observação de Renato Mendonça, com relação à macumba, cabe perfeitamente a centros como a Bahia, mas ninguém a registrou em Minas”[1].
Realmente, Cunha Matos, em 1835, sobre os costumes de Angola escreveu que “O povo miúdo diz que é cristão; usa de bentinhos, verônicas, rosários, breves de Marca, cruzes, etc. e contudo isto também usa unhas e dentes de certos animais e penas de outros a que atribuem virtudes maravilhosas. Esta população não deixa de ir à missa; jejua nos dias de abstinência; confessa-se todos os anos; tem os seus oratórios com as imagens de Cristo e de Santos e ao pé delas, e talvez com maior veneração alguns ídolos ou quiteques, e os feitiços; celebram seus quicumbes, seus lambamentos, (…) tem as suas casas de uso as suas carpideiras, os cantos, danças e banquetes dos mortos”[2].
Se os grupos banto não cultuavam as divindades sudanesas, tinham porém os seus cultos animistas e recorriam aos seus mortos. E os “(…) seus deuses principais são Quibuco, Matumba Calumbo e Lamba Lianquita. O Quibuco é o deus das riquezas; o Mutacalumbo é o da caça; e o Lamba Lianquita é o do raio; e por isso, esse Júpiter Tonante é de todos o mais temido”[3].
No Brasil, a figura do feiticeiro, transmudada depois para o “afamado curador” existente ainda hoje em muitas comunidades mineiras, sem dúvida advém dessa cultura. Claro que os europeus e os ciganos também tinham os seus feiticeiros e os índios, os seus pajés, arquétipos que, também, se incorporaram à cultura dos hodiernos curadores. Porém, a presença maior, sem dúvida é resquício da cultura bantu: o negro feiticeiro que, perseguido, vira um cupinzeiro ou uma moita; que, estando de um lado do rio, de repente, aparece do outro lado; o negro que mata as pessoas enfiando pregos de caixão no seu rastro; os espantadores de cobras, que fazem-nas se encaminhar e ficar numa só região da fazenda, as curas de bicheiras, as benzições, as garrafadas e raízes, os bentinhos e os patuás de orações com as mais variadas finalidades, as “manduracas” (mandracas), tudo isto, são manifestações da religiosidade dos negros bantos, sem prejuízo de que, diferentemente dos sudaneses, aderiram efetivamente o cristianismo.
Negro cirurgião colocando ventosas (Debret, 1817/1831)
A Professora Laura de Mello e Souza trouxe à luz inúmeros registros dessas manifestações encontrados nas devassas eclesiásticas:
“É curioso constatar, nas Minas do século XVIII, a grande incidência de feiticeiros homens – mais numerosos talvez do que as mulheres. Isto se deve em grande parte à sua extração social, homens pobres que eram, negros forros e, algumas vezes, escravos: ora, nas culturas primitivas africanas e indígenas, a magia é desempenhada sobretudo pelos homens”[4].
Assim, a Professora Laura cita primeiro os inúmeros registros sobre pardas e negras que praticavam a feitiçaria, e que com o auxílio do demônio, ou por meio de patuás e mandracas, faziam trabalhos “para facilitar as mulheres aos homens para terem entre si cópula”, e outras finalidades congêneres[5].
Quanto aos homens, a área de atuação era mais abrangente: “um escravo curava fingidamente com enganos, mostrando tirava (sic) ossos e outras drogas dos corpos daqueles a quem curava, chupando-os com a boca, e dizendo que por este modo tirava os feitiços”; (…) O negro Domingos Caldeireiro, culpado diversas vezes e preso, ‘por fazer curas com feitiçarias’ permitindo também em sua casa ajuntamento de negros, danças e batuques; O Careta era um negro (…) que costumava ser visto nas imediações de Vila do Príncipe ‘com umas panelas fervendo sem fogo’; (…) um escravo, cujo nome não é citado e que costumava adorar em sua casa ao ‘deus de sua terra’, corporificado numa panela que ficava pendurada no teto; serviam-lhe guisados, pedindo-lhe depois licença para os comer, e ao seu redor faziam também ‘suas festas e calandura’; O negro tirava brasas do fogo com a boca, deitando-as depois na água a fim de lavar uma crioulinha que com ele morava, e para evitar os castigos de seu senhor costumava untar o corpo com o suco de um pau do mato; (…) o mulato forro Antônio Julião, mestre sapateiro, (…) usava de feitiçarias para ser querido das meretrizes; (…) um escravo chamado José, que punha no chão um prato d’água e fincava ao seu lado uma faca de ponta; fazia a seguir umas perguntas ‘às quais respondia de junto do prato uma vozinha a modo de chiar de morcego, que ele testemunha não entendia, porém que o tal negro dizia que aquela dita voz queria dizer a moléstia ou achaque que cada um tinha; (…) o preto Inácio (…) vivia a fazer curas com raízes, viajando de um lado para outro montado em seu cavalo; fora já preso por superstição e feitiçaria”[6].
Sobre entidades espirituais, cita a mesma pesquisadora o caso de Paulo Gil, pardo forro, que tinha pacto com o demônio e, por isto, precisava de sangue das pessoas para fazer mandinga (palavra bantu). Quase matou de medo a testemunha-denunciante, pois que, numa encruzilhada deixou-a e depois veio chegando acompanhado de “7 ou 8 figuras negras, todas de forma humana, e apenas chegou e disse a ele (…) estas formais palavras – aqui estão os nossos amigos – o que vendo ele testemunha e ouvindo, entrou a tremer e a experimentar os cabelos arrepiados (…)”. Posteriormente, Paulo Gil o pegou dormindo e o feriu com a faca, tirando-lhe um pouco de sangue que disse ser para aqueles amigos e que, assim, ele “havia de ter forças que ninguém havia de poder com ele”; após isto, a testemunha viu levantar “um redemoinho de vento de tal forma que tudo levava consigo”[7].
Como se vê, há muito para ser procurado, catalogado e estudado junto às comunidades negras, onde, inclusive se poderá preservar até mesmo a patente de determinados remédios de plantas, raízes e outros ingredientes animais utilizados pelos curadores.
A Igreja, no entanto, como um “ministério” do governo real, se impunha como o palco maior de onde se comandava e regulava toda a vida social e política nas vilas e povoados, tanto no que no que diz respeito aos “homens bons”, como no que concerne à gentalha e pretos, cujas irmandades mais populares eram as dos pretos.
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