Matéria publicada no ano de 2003, atualizada em 23.01.2019.
O § 5º do artigo 216 da Constituição Federal estabeleceu que “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. Reminiscência é memória; no caso, mais que memória oral, é também memória física (documental e/ou arqueológica). REMINISCÊNCIAS não podem ser confundidas com REMANESCENTES DE QUILOMBOS, pois poderá haver reminiscências quilombolas, sem comunidades, mas não haverá comunidades quilombolas sem reminiscências.
Quanto ao conceito do que seja um quilombo, observe-se, outrossim, que, assim como os contextos da história, os conceitos humanos também não são estáticos.
Palmares, um verdadeiro Estado, inclusive pelos parâmetros do Atual Direito Internacional Público, compunha-se maiormente de escravos fugidos, encravando-se entre um Brasil holandês e outro, muito mais espanhol do que luso.
Os quilombos do Campo Grande, por sua vez – mormente até 1750 – são vilarejos majoritariamente de pretos forros e brancos pobres escapos do sistema Tributário da Capitação, o sistema tributário mais cruel e sanguinário das Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Os quilombos do período pré-abolição, a exemplo do famoso Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, deram outra forma ao conceito: são locais escolhidos pelos militantes abolicionistas para onde incentivavam a fuga, guiavam e protegiam os escravos encaminhados para esses redutos, com vistas a dar um golpe final, inclusive econômico e moral, nos escravistas ainda renitentes e radicais.
No entanto, mesmo após a Abolição o conceito de quilombo, como agrupamento de pretos que buscam, juntos, a sobrevivência, ainda pode ser empregado validamente: tanto antes como depois do Treze de Maio, muitos pretos forros ou livres ganharam pedaços de terra de seus donos ou ex-donos, ou ocuparam pedaços de terras devolutas, sem, no entanto, jamais terem conseguido (por razões alheias às suas vontades) a titulação dessas terras. Essas comunidades de pretos são encontradas ainda hoje geralmente encantoadas por grileiros ou invasores, espertos ou violentos, que já lhes tomaram toda ou quase toda a terra; terras que, por lógica, devem ser tidas, também, como “os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. É o caso de se devolverem os quilombolas remanescentes às suas reminiscências.
Estes são os REMANESCENTES de quilombos de que fala o artigo 68 das DCT da Constituição Federal: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Ou seja, reminiscências de quilombos não se confunde com remanescentes, ou comunidades quilombolas, que, além da comunidade deverá ter também reminiscências sociológicas físicas, toponímicas e/ou documentais, completando os pressupostos do § 5º da Constituição Federal e do artigo 68 de suas DCT.
Assim, salvo melhor interpretação, os locais de reminiscências de quilombo, para efeitos do tombamento previsto no § 5º do artigo 216 da Constituição Federal, podem ser identificados, localizados e evidenciados por:
- escritos ou manuscritos administrativos, judiciais e/ou eclesiásticos oficiais ou fidedignos e, depois do início do século XIX, até mesmo por informes jornalísticos;
- mapas antigos, específicos, gerais, particulares ou oficiais, corroborando, esclarecendo ou ampliando, as notícias obtidas nas fontes mencionadas em “1” supra;
- a toponímia remanescente, em especial a micro toponímia descrita nos mapas topográficos, de preferência nas cartas precedentes à construção de represas e hidroelétricas, corroborando, esclarecendo ou ampliando, as notícias obtidas nas fontes anteriores, mormente em “1” supra;
- achado de peças antigas encontradas na posse da população local, ou por escavações arqueológicas, comprovado por depoimentos escritos e laudo firmado por um pesquisador de história, um arqueólogo formado e pessoa especializada ou de notável saber sobre a peça ou artefato encontrado.
- pela coleta da tradição oral, mediante depoimento gravado e depois reduzido a termo das pessoas com mais de 50 anos, ou outras de notável memória dos antepassados, confirmando as provas documentais anteriores e/ou caracterizando ou não a existência de comunidade a ser protegida nos termos do artigo 68 do ato das DCT da Constituição Federal de 1988.
A lei nº 7668 de 22.08.1988, que autorizou o Poder Executivo a criar a Fundação Palmares, não lhe atribuiu diretamente a competência para proceder aos tombamentos de locais de quilombo (reminiscências sem comunidade), fazendo referencias objetivas somente aos bens imateriais (artigo 1º) e titulação de terras às comunidades quilombolas (Inciso III e § 2º) dessa mesma lei.
Também os Estatutos da Fundação Palmares, aprovados e introduzidos pelo Decreto nº 418 de 10.01.92, em seu artigo 2º estabeleceu que ela “tem por finalidade promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, sem, no entanto, abordar a questão dos tombamentos de locais de quilombo onde inexista comunidades.
Nessa linha, o Decreto nº 3.912 de 10.09.2001 regulamentou apenas as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas, nada regulamentando sobre os locais de quilombos sem comunidade ou dos valores imateriais em si mesmos, ou seja, das reminiscências de quilombos.
A Constituição do Estado de Minas Gerais NADA especificou sobre a contribuição negra, limitando-se a generalizar em seu artigo 207 sobre o exercício dos Direitos Culturais de seu povo, onde os bens e valores da contribuição negra, incluindo locais de quilombo e comunidades quilombolas remanescentes, foram compreendidos em gênero nos dispositivos de seus artigos 208, 209 e 210.
Pelo que se vê no site da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, o único parlamentar preocupado com as questões dos locais de quilombo, das comunidades quilombolas e da preservação cultural da contribuição negra nas Minas Gerais era o, então deputado estadual, Adelmo Carneiro Leão. No entanto, seu projeto de Lei n° 1637/2001, que instituía “PROGRAMA DE RESGATE HISTÓRICO E VALORIZAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS EM MINAS GERAIS, TENDO COMO BASE O ART. 68 DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS – PROJETO QUILOMBOS”, foi rejeitado e arquivado definitivamente em 03.02.2003.
Entendemos que a principal razão desse projeto ter sido rejeitado e arquivado, foi a de se ter fundamentado em teses de Carlos Magno Guimarães, mestre em Sociologia pela UFMG e doutor nessa mesma matéria pela USP. Magno se diz também arqueólogo. Porém, sua obra, de fato, jamais o credenciou como autoridade no assunto que, aliás, tem sido muito prejudicado pelos seus pareceres pueris e sem fundamento científico.
Em 20 de novembro de 2003, o presidente Lula revogou o decreto 3912 de 2001 de FHC, através de seu decreto nº 4887, onde instituiu as chamadas auto-atribuição e autodefinição, vulgarizando, salvo melhor interpretação, a intenção legis do artigo 68 das DTC da Constituição Federal de 1988. Seu objetivo, a meu ver, foi criar comunidades para mantê-las tuteladas pelo seu partido e aliados de esquerda, para utilizá-las em seus movimentos sociais, como sempre fez com os chamados sem-terra, aos quais esse decreto quis equiparar e equiparou os quilombolas. Equívoco crasso: quilombolas não invadem terras; ao contrário, tiveram e têm suas terras invadidas por grileiros e aproveitadores, inclusive em busca das indevidas indenizações geradas pelas más interpretações desse decreto. O mérito desse decreto: possibilitou que famílias negras que tiveram a posse legal ou herdaram terras possam mantê-las ou recuperá-las da violência latifundiária ocorrida, principalmente, durante o fim do Império e no decorrer da primeira República (1889 a 1930). A grande força para os quilombolas é o Ministério Público Federal. Os grandes empecilhos têm sido a Fundação Palmares, o IPHAN e o INCRA, cuja burocracia e ideologia política, além da arrogância de seus técnicos, tudo retardam, tudo complicam, como se trabalhassem para si mesmos e não para o Brasil. É o que temos até hoje é o que temos usado. Mas precisa melhoras.
A Fundação Palmares e o IPHAN, principalmente este último, quanto às REMINISCÊNCIAS quilombolas, além de outros erros estupendos, insistem em chamar esses locais históricos, sem comunidades quilombolas, de REMANESCENTES, (Página fora do ar. Tentaram arrumar, mas escreveram algumas outras EXOTIZANTES asneiras) quando o correto é REMINISCÊNCIAS, como ocorreu no grotesco tombamento do Segundo Quilombo do Ambrósio de Ibiá. Fosse uma empresa privada, com certeza, todos eles seriam demitidos por incompetência profissional. Mas, ao invés disso, conseguem se manter até a presente data, pendurados de unhas e dentes em seus cabides. Nossa única esperança, apesar da demora, é a ação do Ministério Público Federal.
Obs.: Outubro de 2022: Talvez seja por essas e outras que o IPHAN e a Fundação Palmares, meros e incultos cabides de empregos políticos, foram quase destruídos no Governo Bolsonaro.
Sugerimos, em continuidade, as matérias:
“Comunidades Quilombolas – A Ciência do Direito deve Nortear a Definição“.
e
“BENS QUILOMBOLAS MATERIAIS E IMATERIAIS“.
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