A historiografia tem sempre bons registros das derrotas dos pretos revoltosos. Um desses registros é a famosa carta de dom Pedro de Almeida, conde de Assumar, ao rei de Portugal:
“Sobre a sublevação que os negros intentaram fazer a estas Minas. (…). Verificou-se a minha suspeita com o tempo, porque os negros, não contentes já com roubarem desde os mocambos que tinham em diversas partes e que conservaram sempre; sem embargo do grande cuidado que tenho tido de os extinguir, aspiraram a maior empresa e, ainda que grande, não desproporcionada, se se olhar para a sua multidão, a respeito dos brancos excessiva (…) tendo-se ajustado entre si a maior parte da negraria destas Minas a levantarem-se contra os brancos, trataram de urdir uma sublevação geral induzindo-se uns a outros e conformando-se todos em partes mui distantes por meio de vários emissários que andavam de umas para outras paragens fazendo esta negociação, e tinham ajustado entre si que a primeira operação dela fosse em quinta-feira de endoenças deste ano, porque achando-se todos os homens brancos ocupados nas Igrejas, tinham tempo para arrombar as casas, tirar as armas delas e investir os brancos, e degolando-os sem remissão alguma[1].
Alguns dias antes da Semana Santa tiveram os ditos negros diferenças sobre o domínio que pretendiam os de uma nação sobre as mais, e veio a romper-se o segredo na Comarca do Rio das Mortes de onde tive aviso desta sublevação com a notícia de terem já os negros da dita comarca nomeado entre si, Rei, Príncipe e os oficiais militares e, quando eu me persuadia a que poderia isto ser alguma ridicularia de negros[2], me chegou outro aviso de uma paragem chamada o Forquim[3], termo desta Vila (…) Sabendo que no morro do Ouro Preto havia também suspeita e que os negros tratavam da mesma matéria, por ser parte onde mineravam três para quatro mil negros mui resolutos e por isto era onde se receava maior perigo, passei a Vila Rica e fiz subir duas companhias ao dito morro para dar busca às armas, porém não se acharam, ou por não as haver, ou porque estivessem escondidas em partes ocultas e subterrâneas em que os negros vivem no dito morro (…). Como todas essas prevenções se fizeram antecipadas ao tempo em que os negros determinavam a executar a sua tenção, desbaratando-se lhes, e com a prisão de muitos negros e negras culpados e castigos a outros, e se foi extinguindo a sedição, e tornou este País ao sossego em que estava, porém como aos que ficam sê-lhes não podem tirar os pensamentos e os desejos naturais de liberdade (…) sempre este fica exposto a suceder-lhe cada dia o mesmo, porque esta não é a primeira sublevação que os negros intentam, pois já em tempos passados intentaram por outras vezes a pô-la em execução, e como lhes dá ousadia a sua multidão, o pouco número de brancos a seu respeito, e a confiança que estes fazem deles sem os emendar, as repetidas experiências da sua infidelidade (…) e me parece que sobre esta matéria se deve fazer madura reflexão e que Vossa Majestade mande considerar a sua importância e juntamente os meios que poderão aplicar-se para o futuro (…) Vila do Carmo, 20 de abril de 1719. Conde dom Pedro de Almeida”[4].
Providências do Conde de Assumar
Segundo Diogo de Vasconcelos, “Da Comarca do Rio das Mortes, já havia(m) dirigido ao conde queixas fundadas na insolência dos escravos do Ouvidor, Dr. Valério da Costa Gouveia e do coronel Ambrósio Caldeira Brant. Este sobretudo tinha escravos que ainda o haviam servido na guerra contra os paulistas”[5].
“Em consequência das denúncias mandou o conde e sem demora capturar os negros indigitados por cabeças no Forquim, no Ouro Branco, em São Bartolomeu, na Casa Branca, na Itabira. Na serra de Ouro Preto, aonde trabalhavam para mais de quatro mil, deram-se buscas em ordem a sequestrarem-se as armas, sem resultado, porém; (…)”[6].
O Conselho Ultramar, despachando ao rei sobre as correspondências do conde de Assumar, informou sobre “O cuidado com que se houve o tenente general João Ferreira Tavares, sendo o primeiro que lhe deu parte deste negócio e pôs em execução a prisão dos principais agressores desse delito, (…)”[7].
“Para a Comarca do Rio das Mortes, centro das maquinações subversivas, (…) ali chegando o tenente general fez prender e remeter para a Vila do Carmo os intitulados Reis das nações Minas e Angola e os mais que se diziam estarem nomeados para os cargos da nova república, diligências que não foram difíceis; desde que as duas nações em rivalidade fizeram transbordar do segredo para o público as desconfianças e depois a certeza do delito”[8].
“Entre os presos o tenente general incluiu dois escravos do ouvidor e alguns do coronel Ambrósio Caldeira, atos, que puseram o ouvidor em grande excitação, bradando que toda aquela diligência redundava na traça de inimigos seus, a fim de o prejudicarem. Entanto, foi ele (Valério da Costa Gouveia) o maior dos que pediram providências ao conde, exagerando as proporções do perigo”[9].
Em razão do supracitado, o Conselho Ultramar, despachando ao rei sobre as correspondências do conde de Assu-mar, ratificou seu pedido de que se “(…) estranhe mui aspera-mente o mesmo governador, ao ouvidor-geral do Rio das Mortes Valério da Costa Gouveia, a renitência com que se portou na entrega dos seus negros, ação mui estranha de um ministro que devia procurar que se prendessem os réus de um tão aboninável crime, e não embaraçar a sua prisão, (…)”[10].
O Conselho Ultramar endossou os atos de Assumar, “Ordenando-se-lhe que faça sentenciar logo, os negros culpados que se acham presos conforme merecem as suas culpas, e mande fazer toda diligência por prender aos mais que se acharem compreendidos; (…)”[11].
Para o julgamento rápido dos negros culpados, o Conselho Ultramar também aprovou a sugestão de Assumar: “E no que respeita à devassa que se tirou deste caso, que o governador a faça sentenciar pelos ditos três ouvidores gerais, sendo relator dela o que a tirou, e o que se vencer por mais votos que se execute até a morte natural, fazendo-se execução se for possível nos lugares onde for mais conveniente para terror e exemplo, e os mais negros cabendo na forma de seu delito o castigo de galés, sejam condenados a elas e mandados para o Rio de Janeiro, para servirem naquela praça na obra das suas fortificações amarrados dois a dois; (…)”[12].
Consultado pelo Rei sobre essa tal sublevação de Assumar, seu sucessor, o governador dom Lourenço de Almeida, respondeu-lhe que “depois que estas Minas se descobriram e povoaram até ao presente tempo, ainda não houve a mais pequena suspeita de que os negros se quisessem levantar contra os brancos”.
Afirmou que, “estas oposições – que disseram a Vossa Majestade – que eles tiveram sobre o seu reinado, foram fabulosas e, assim, o tal levantamento, como a controvérsia de fazerem o seu rei foi uma notícia fantástica[13]que levantaram contra os pobres negros e só a fim de encabeçar um grande serviço no tenente-general João Ferreira Tavares, que então não o era, para que Vossa Majestade lhe desse este posto como assim lhe sucedeu e, para que Vossa Majestade veja que esta é a mesma verdade, pudesse informar do Dr. Valério da Costa[14], que então era ouvidor-geral do Rio das Mortes, a quem também açoitaram uns negros, para que violentamente dissessem que se queriam levantar e o dito ministro dirá o que sabe se acaso não faltar ao que deve, porque ele, esta mesma conta quis dar a Vossa Majestade e foram necessários muitos rogos (de Assumar) para que a não desse”.
O exagerado volume de correspondência de Assumar nos permitiu aferir as contradições e desmascarar as mentiras que ele inventou para favorecer seu comparsa militar[15]. Fomos o primeiro autor a desmascarar e a comprovar mais essa mentira do criminoso conde de Assumar.
Tjmar – 06.11.2024.
[1] Veja-se que não se pretendia matar os pardos e negros forros.
[2] “Festejo de negros”, a exemplo da Festa de Nossa Senhora do Rosário.
[3] Hoje, distrito de Mariana/MG.
[4] APM SC Cód. 4, p. 587-596-v, Cadernos do Arquivo 1–Escravidão em Minas Gerais, 1988, p. 37.
[5] História Antiga de Minas Gerais, p. 167.
[6] História Antiga de Minas Gerais, p. 167.
[7] Documentos Interessantes – Arquivo do Estado de São Paulo, v. LIII, p. 193.
[8] História Antiga de Minas Gerais, p. 168.
[9] História Antiga de Minas Gerais, p. 168.
[10] Documentos Interessantes – Arquivo do Estado de São Paulo, v. LIII, p. 193.
[11] Documentos Interessantes – Arquivo do Estado de São Paulo, v. LIII, p. 192.
[12] Documentos Interessantes – Arquivo do Estado de São Paulo, v. LIII, p. 193.
[13] Segundo o Aurélio, fantástico é aquilo que “só existente na fantasia ou imaginação”; “Falso, simulado, inventado, fictício”.
[14] Após seu retorno a Portugal, ingressaria na carreira eclesiástica, chegando a ser sagrado bispo em 1741. Faleceu em 1742. Códice Costa Matoso, v. 2, p. 40.
[15] Minas Gerais: Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, pp. 308-379.