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Quilombo do Ribeirão de Santo Antônio

Os primórdios de muitas cidades de Minas revelam que, antes do primeiro sesmeiro, a região era habitada por quilombolas. Um bom exemplo disto é o Quilombo do Ribeirão de Santo Antônio que deu lugar a uma sesmaria com o mesmo nome e que hoje tem em seu centro o município de Moema, adentrando aos territórios dos atuais municípios de Santo Antonio do Monte e de Bom Despacho, no Alto São Francisco, em Minas Gerais.

O português Antônio Rodrigues da Rocha, juntamente com o sargento-mor Gabriel da Silva Pereira, Antônio Dias Nogueira e Domingos Gonçalves Viana, todos residentes em Pitangui e em Itapecirica (Divinópolis), desde o início do ano de 1758, prepararam uma expedição composta de, provavelmente, trinta homens, entre brancos e pretos livres, protegidos por quatorze armas de fogo e com bastantes provisões acondicionadas em cavalos de carga. A expedição, guiada por capitães do mato – que geralmente eram pretos, tanto livres como escravos – contratados por Antônio Rodrigues da Rocha, deixou as montanhas, atravessou o rio Pará e se encaminhou para o Lambari, às margens do qual pode ter acampado para passar a noite.
“Talvez, nesta noite, nos imensos cerrados entre o córrego dos Machados e o ribeirão de Santo Antônio, revoadas mal-agourentas de curiangos e os rosnados de guarás tenham incomodado o sono dos negros velhos que devem ter tido sonhos horríveis. Ver seus jovens guerreiros arcabuzados ou passados a fio de espada, talvez não fosse a pior parte do pesadelo. Medonho era ver os negrinhos a ferros e as negrinhas magricelas voltarem para o inferno da escravidão. Deus, chamado em sua língua de N’Zambe, havia muito, realmente, parece que os tinha abandonado”.

Antes que o sol nascesse, a expedição já levantara acampamento e atravessara o rio Lambari. Os cachorros de fila, sentindo cheiro de negros, ficaram assanhados. Os capitães do mato seguiram para as nascentes dos córregos da Forquilha e do Espinho e a expedição seguiu em frente até perto da foz do córrego dos Machados. Antônio Rodrigues da Rocha, ao passar por esse ribeirão, deu-lhe o nome de ribeirão de Todos os Santos. Seguindo caminho, passou pelo ribeirão da Caiçara, ao qual, talvez em homenagem a Domingos Gonçalves Viana (aquele que, em 1742 estava lá na Vila da Campanha), deu o nome de São Domingos. Os cachorros endoidaram. Havia negros por perto!
Os negros foram cercados em região, provavelmente, situada entre o ribeirão de Santo Antônio e a atual sede do município de Moema. Os estrondos dos tiros, o ladrar dos cães e a fumaceira no ar. As espadas e facões se tingiram no vermelho do sangue de jovens guerreiros que preferiram a morte à escravidão. Do restante dos negros, uns fugiram, outros se renderam e foram postos a ferros. Os homens brancos, senhores da terra, comemoraram a vitória com muita cachaça. Antônio Rodrigues da Rocha, provavelmente, em homenagem ao santo de seu nome, batizou aquele ribeirão de ribeirão de Santo Antônio. Montaram acampamento e, não demorou muito, chegaram os capitães do mato. A colheita junto às nascentes do córrego da Forquilha também fora boa. Traziam as espadas tintas de sangue, muitas pencas de orelhas decepadas e uma fila de negros amarrados. Nesta ocasião, deixando o acampamento, Antônio Rodrigues da Rocha pode ter ido explorar a região além do Santo Antônio, quando, então, resolveu dar ao ribeirão que deságua no Jacaré e engano o nome de ribeirão de Santa Luzia” [1] .
Após fazer bom reconhecimento da região, foi-se embora a expedição, levando para Pitangui uma fila imensa de negros amarrados pelo pescoço, como se fossem elos feitos de corda, ferro e sangue em uma macabra corrente de restos humanos. O destino desses negros seria tenebroso. Segundo determinava o alvará régio de 03 de março de 1741, “os negros que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra “F” (de fujão), que para este efeito haverá nas câmaras; e se quando for executar a pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandado do juiz-de-fora, ou ordinário da terra, ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia [2] . Mais tarde, no processo de demarcação de sua sesmaria, Antônio Rodrigues da Rocha citaria que ele e sua gente e outros a quem pagou, haviam amarrado os negros do mato neste sertão, os quais fizeram achar donos em Pitangui. Como se vê, este era um quilombo comum de escravos fugidos. Disse ainda que tinha direito à sesmaria porque CONQUISTARA A TERRA AOS NEGROS DO MATO.
Encontramos no Arquivo Judiciário de Pitangui os autos de demarcação desta sesmaria sob a codificação XXX, 11, dos quais extraímos a base da crônica acima e transcrevemos, agora, o seu início: “Diz Antônio Rodrigues da Rocha, que em 02 de maio de 1758, com o sargento-mor Gabriel da Silva Pereira, hoje defunto, Antônio Dias Nogueira, Domingos Gonçalves Viana, perferiram (perfilaram) 14 armas de fogo e cavalos de carga para comerem, e cortaram o rio Lambari até o rio de São Francisco a desflorarem terras e campos para criar gado vacum e cavalar, estando esse pedaço de sertão té ali povoado de FERAS E NEGROS DO MATO; e, com efeito, se situaram. Que, depois, entrou e veio entrando mais gente e que hoje se acham vinte e quatro fogos (…) [3].
Domingos Gonçalves Viana situou fazenda ao sul do atual município de Bom Despacho e Antônio Dias Nogueira a sudoeste. Antônio Rodrigues da Rocha se instalou com várias fazendas em toda a região localizada entre os ribeirões Santa Luzia/Jacaré e o dos Machados, limitando-se a oeste com o rio São Francisco e a leste com terras devolutas e com seus companheiros de expedição. As fazendas prosperavam, e as de Antônio Rodrigues da Rocha, em 1762, já rendiam impostos à Coroa Portuguesa.
Os fatos acima puderam ser exumados do pó do séculos graças ao importantíssimo Arquivo Judiciário de Pitangui – AJP que guarda a história de todas cidades do centro-oeste de Minas Gerais.
Em Moema, Santo Antonio do Monte e Bom Despacho já não havia tradição dos fatos acima que, no entanto, puderam ser confirmados também pela toponímia que, a nordeste do município de Moema, nascentes dos córregos do Espinho e das Lages, já dentro do município de Bom Despacho, tem até hoje um corregozinho e uma região com os nomes de Calambau e Quilombo.
Em 1987, com a ajuda da Prefeitura Municipal de Moema, Prefeito Rafael Bernardes Ferreira, publiquei um micro livrinho de 68 páginas com a História de Moema. Os posteriores prefeitos, por entenderem que o livro fora editado por “outro partido”, tentaram boicotá-lo e fizeram tudo para desmoralizá-lo. Não conseguiram, visto que muitos professores de primeiro e segundo graus (hoje, 2022, Fundamental e Médio) passaram a adotá-lo em suas aulas.
Em homenagem a esses bravos professores, a Câmara Municipal de Moema, pela Lei Municipal n. 732 de 21.05.98 tornou oficial a segunda edição que lhes apresentei, então, revisada e ampliada, com 224 folhas.
Como é evidente, a segunda Edição do “História de Moema” não seria publicada. Assim, a partir de janeiro de 2001, eu a coloquei a disposição na Internet, para quem quiser fazer download e distribuir cópias, desde que mantida a integridade da obra e a gratuidade da distribuição, em sua 3ª edição de setembro de 2022.
Voltando ao Quilombo do Ribeirão de Santo Antonio, apesar de não haver conotação com o fato ocorrido em maio de 1758, outro tesouro imaterial foi documentado na cidade de Bom Despacho: livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga[4], de Sônia Queiroz, 1998, Belo Horizonte: Editora UFMG (p. 116-117), resenhado por Hildo H. do Couto”. Pelo que vi na reportagem do jornal é “língua” totalmente bantu em seus radicais africanos, misturada, porém com radicais da língua geral dos paulistas de Pitangui. Porém, viríamos a constatar que a maioria das palavras da “língua da Tabatinga”, como eles mesmos dizem, seria de “negros da Costa”, ou seja, de povos sudaneses e não bantos. Além disso, a própria dona Fiotinha teria aprendido essa língua com o seu pai, que seria baiano e não mineiro. Além disso, o tal Bairro da Tabatinga é recentíssimo e nada tem a ver com o Quilombo do Ribeirão de São Antônio.
Consigne-se, finalmente, que antes disto, em 1991, já conhecia os dialetos da região (que são bem diferentes da tal “língua da Tabatinga), tanto que escrevi nessa época o romance histórico “SESMARIA – Cruzeiro, o Quilombo das Luzes” que há cerca de dois anos vinha distribuindo e, agora, em sua primeira edição ilustrada em papel, de julho de 2018. 

Como se vê, não é por acaso que a maioria dos livros de histórias de cidades preferiram omitir a questão da participação negra. Não é fácil. Todas as portas, no meu caso, se fecharam [5] . No entanto, as águas vão para o mar. Conheço vários colegas de cidades diferentes que, sem se importar com o preconceito, estão incluindo a participação negra na historiografia de suas urbes. Isto é muito bom. Em breve teremos um belíssimo mosaico da participação negra em TODA a historiografia mineira. Vide os belíssimos exemplos de Formiga, MG e Cristais, MG.

2003 © Todos os direitos reservados a Tarcísio José Martins

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[1] APM – SC, Cód. 77, fl. 14 – O texto iniciado pelas grandes aspas, como se verá, é apenas uma crônica urdida com base nos documentos que, a seguir, serão descritos e interpretados. Esses mesmos fatos da História de Moema, aliás, deram origem ao romance-histórico, intitulado “SESMARIA – Cruzeiro, o Quilombo das Luzes”, de 334 páginas, incluindo a capa, publicado em papel pela Mg Quilombo Editora, podendo ser adquirido em sua loja virtual
[2] “Cadernos de Arquivo-1/APM”,  pg. 104/105, citando
[3] História de Bom Despacho, pg. 36.
[4] Bairro de Bom Despacho, habitado por pardos e negros que falam a mesma “língua” que alguns negros velhos de Moema.
[5] Isto, depois da primeira edição patrocinada pelo então prefeito, Rafael Bernardes Ferreira.